12 de Dezembro de 2014, às 13:09
1º de janeiro de 2015
Já não escravos, mas irmãos
1. No início dum novo ano, que acolhemos como uma graça e um dom de Deus
para a humanidade, desejo dirigir, a cada homem e mulher, bem como a todos os
povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis
das várias religiões, os meus ardentes votos de paz, que acompanho com a minha
oração a fim de que cessem as guerras, os conflitos e os inúmeros sofrimentos
provocados quer pela mão do homem quer por velhas e novas epidemias e pelos
efeitos devastadores das calamidades naturais. Rezo de modo particular para
que, respondendo à nossa vocação comum de colaborar com Deus e com todas as
pessoas de boa vontade para a promoção da concórdia e da paz no mundo, saibamos
resistir à tentação de nos comportarmos de forma não digna da nossa humanidade.
Já, na minha mensagem para o 1º de Janeiro passado,
fazia notar que «o anseio duma vida plena (…) contém uma aspiração irreprimível
de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos
inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e
abraçar».[1] Sendo o homem um ser relacional, destinado a realizar-se no
contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade, é
fundamental para o seu desenvolvimento que sejam reconhecidas e respeitadas a
sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente, o flagelo generalizado da
exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a
tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade.
Tal fenómeno abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do
outro e a aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas sobre
as quais desejo deter-me, brevemente, para que, à luz da Palavra de Deus,
possamos considerar todos os homens, «já não escravos, mas irmãos».
À escuta do projecto de
Deus para a humanidade
2. O tema, que escolhi para esta mensagem,
inspira-se na Carta de São Paulo a Filémon; nela, o Apóstolo pede ao seu
colaborador para acolher Onésimo, que antes era escravo do próprio Filémon mas
agora tornou-se cristão, merecendo por isso mesmo, segundo Paulo, ser
considerado um irmão. Escreve o Apóstolo dos gentios: «Ele foi
afastado por breve tempo, a fim de que o recebas para sempre, não já como
escravo, mas muito mais do que um escravo, como irmão querido» (Flm 15-16).
Tornando-se cristão, Onésimo passou a ser irmão de Filémon. Deste modo, a
conversão a Cristo, o início duma vida de discipulado em Cristo constitui
um novo nascimento (cf. 2 Cor 5, 17; 1
Ped 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo
fundante da vida familiar e alicerce da vida social.
Lemos, no livro do Génesis (cf. 1, 27-28),
que Deus criou o ser humano como homem e mulher e abençoou-os
para que crescessem e se multiplicassem: a Adão e Eva, fê-los pais, que, no
cumprimento da bênção de Deus para ser fecundos e multiplicar-se, geraram a
primeira fraternidade: a de Caim e Abel. Saídos do mesmo ventre,
Caim e Abel são irmãos e, por isso, têm a mesma origem, natureza e dignidade de
seus pais, criados à imagem e semelhança de Deus.
Mas, apesar de os irmãos estarem ligados
por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a fraternidadeexprime
também a multiplicidade e a diferença que existe entre eles. Por conseguinte,
como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão, por natureza,
relacionadas umas com as outras, cada qual com a própria especificidade e todas
partilhando a mesma origem, natureza e dignidade. Em virtude disso, a fraternidade constitui
a rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por
Deus.
Infelizmente, entre a primeira criação
narrada no livro do Génesis e o novo nascimento em Cristo –
que torna, os crentes, irmãos e irmãs do «primogénito de muitos irmãos» (Rom 8,
29) –, existe a realidade negativa do pecado, que interrompe tantas vezes a
nossa fraternidade de criaturas e deforma continuamente a beleza e nobreza
de sermos irmãos e irmãs da mesma família humana. Caim não só
não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja, cometendo o primeiro
fratricídio. «O assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição
radical da vocação a ser irmãos. A sua história (cf. Gen 4, 1-16)
põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de viver
juntos, cuidando uns dos outros».[2]
Também na história da família de Noé e
seus filhos (cf. Gen 9, 18-27), é a falta de piedade de Cam
para com seu pai, Noé, que impele este a amaldiçoar o filho irreverente e a
abençoar os outros que o tinham honrado, dando assim lugar a uma desigualdade
entre irmãos nascidos do mesmo ventre.
Na narração das origens da família humana,
o pecado de afastamento de Deus, da figura do pai e do irmão torna-se uma
expressão da recusa da comunhão e traduz-se na cultura da servidão (cf. Gen 9,
25-27), com as consequências daí resultantes que se prolongam de geração em
geração: rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos
direitos fundamentais, institucionalização de desigualdades. Daqui se vê a
necessidade duma conversão contínua à Aliança levada à perfeição pela oblação
de Cristo na cruz, confiantes de que, «onde abundou o pecado, superabundou a
graça (…) por Jesus Cristo» (Rom 5, 20.21). Ele, o Filho
amado (cf. Mt 3, 17), veio para revelar o amor do Pai
pela humanidade. Todo aquele que escuta o Evangelho e acolhe o seu apelo à
conversão, torna-se, para Jesus, «irmão, irmã e mãe» (Mt 12,
50) e, consequentemente, filho adoptivo de seu Pai (cf. Ef 1,
5).
No entanto, os seres humanos não se tornam
cristãos, filhos do Pai e irmãos em Cristo por imposição divina, isto é, sem o
exercício da liberdade pessoal, sem se converterem livremente a
Cristo. Ser filho de Deus requer que primeiro se abrace o imperativo da
conversão: «Convertei-vos – dizia Pedro no dia de Pentecostes – e peça cada um
o baptismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados;
recebereis, então, o dom do Espírito Santo» (Act 2, 38). Todos aqueles
que responderam com a fé e a vida àquela pregação de Pedro, entraram na fraternidade da
primeira comunidade cristã (cf. 1 Ped 2, 17; Act 1,
15.16; 6, 3; 15, 23): judeus e gregos, escravos e homens livres (cf. 1
Cor 12, 13; Gal 3, 28), cuja diversidade de origem e
estado social não diminui a dignidade de cada um, nem exclui ninguém do povo de
Deus. Por isso, a comunidade cristã é o lugar da comunhão vivida no amor entre
os irmãos (cf. Rom 12, 10; 1 Tes 4, 9; Heb 13,
1; 1 Ped 1, 22; 2 Ped 1, 7).
Tudo isto prova como a Boa Nova de Jesus
Cristo – por meio de Quem Deus «renova todas as coisas» (Ap 21,
5)[3] – é capaz de redimir também as relações entre os homens, incluindo a
relação entre um escravo e o seu senhor, pondo em evidência aquilo que ambos
têm em comum: a filiação adoptiva e o vínculo de fraternidade em Cristo. O
próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, visto que um
servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos
amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15,
15).
As múltiplas faces da
escravatura, ontem e hoje
3. Desde tempos imemoriais, as diferentes sociedades humanas conhecem o
fenómeno da sujeição do homem pelo homem. Houve períodos na história da
humanidade em que a instituição da escravatura era geralmente admitida e
regulamentada pelo direito. Este estabelecia quem nascia livre e quem, pelo
contrário, nascia escravo, bem como as condições em que a pessoa, nascida
livre, podia perder a sua liberdade ou recuperá-la. Por outras palavras, o
próprio direito admitia que algumas pessoas podiam ou deviam ser consideradas
propriedade de outra pessoa, a qual podia dispor livremente delas; o escravo
podia ser vendido e comprado, cedido e adquirido como se fosse uma mercadoria qualquer.
Hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência da humanidade, a
escravatura – delito de lesa humanidade[4] – foi formalmente abolida no
mundo. O direito de cada pessoa não ser mantida em estado de escravidão ou
servidão foi reconhecido, no direito internacional, como norma inderrogável.
Mas, apesar de a comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos
para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas
estratégias para combater este fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas –
crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e
constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.
Penso em tantos trabalhadores e
trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível
formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da
indústria manufactureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do
trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais, como –
ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador.
Penso também nas condições de vida
de muitos migrantes que, ao longo do seu trajecto dramático,
padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados
física e sexualmente. Penso em tantos deles que, chegados ao destino depois
duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em
condições às vezes desumanas. Penso em tantos deles que diversas circunstâncias
sociais, políticas e económicas impelem a passar à clandestinidade, e naqueles
que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições
indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma
dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho
como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de
trabalho... Sim! Penso no «trabalho escravo».
Penso nas pessoas obrigadas a
prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e nas escravas
e escravos sexuais; nas mulheres forçadas a casar-se, quer as que são
vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por
morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio
consentimento.
Não posso deixar de pensar a
quantos, menores e adultos, são objecto de tráfico e
comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como
soldados, para servir de pedintes, para actividades ilegais
como a produção ou venda de drogas, ou paraformas disfarçadas de
adopção internacional.
Penso, enfim, em todos aqueles que são
raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo
os seus objectivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às
meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são
vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos.
4. Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma concepção da pessoa
humana que admite a possibilidade de a tratar como um objecto. Quando o pecado
corrompe o coração do homem e o afasta do seu Criador e dos seus semelhantes,
estes deixam de ser sentidos como seres de igual dignidade, como irmãos e irmãs
em humanidade, passando a ser vistos como objectos. Com a força, o engano, a
coacção física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança
de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de
alguém; é tratada como meio, e não como fim. Juntamente com esta causa ontológica – a
rejeição da humanidade no outro –, há outras causas que concorrem para se
explicar as formas actuais de escravatura. Entre elas, penso em primeiro lugar
na pobreza, no subdesenvolvimento e na exclusão, especialmente
quando os três se aliam com a falta de acesso à educação ou
com uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo
inexistentes, oportunidades de emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e
servidão são pessoas que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza
extrema e, dando crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das
redes criminosas que gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam
habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e
adolescentes de todos os cantos do mundo.
Entre as causas da escravatura, deve ser
incluída também a corrupção daqueles que, para enriquecer,
estão dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico das pessoas
humanas requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através da corrupção
dos intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de outros actores
do Estado ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto acontece
quando, no centro de um sistema económico, está o deus dinheiro, e não o homem,
a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou económico, deve estar
a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do universo. Quando
a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de
valores».[5]
Outras causas da escravidão são os conflitos
armados, as violências, a criminalidade e
o terrorismo. Há inúmeras pessoas raptadas para ser vendidas,
recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto outras se vêem
obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e
mesmo os familiares. Estas últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão
terríveis condições, mesmo à custa da própria dignidade e sobrevivência,
arriscam-se assim a entrar naquele círculo vicioso que as torna presa da
miséria, da corrupção e das suas consequências perniciosas.
Um compromisso comum
para vencer a escravatura
5. Quando se observa o fenómeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal
de migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão,
fica-se frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da
indiferença geral.
Sem negar que isto seja, infelizmente,
verdade em grande parte, apraz-me mencionar o enorme trabalho que muitas congregações
religiosas, especialmente femininas, realizam silenciosamente, há tantos
anos, a favor das vítimas. Tais institutos actuam em contextos difíceis, por
vezes dominados pela violência, procurando quebrar as cadeias invisíveis que
mantêm as vítimas presas aos seus traficantes e exploradores; cadeias, cujos
elos são feitos não só de subtis mecanismos psicológicos que tornam as vítimas
dependentes dos seus algozes, através de chantagem e ameaça a eles e aos seus
entes queridos, mas também através de meios materiais, como a apreensão dos
documentos de identidade e a violência física. A actividade das congregações
religiosas está articulada a três níveis principais: o socorro às vítimas, a
sua reabilitação sob o perfil psicológico e formativo e a sua reintegração na
sociedade de destino ou de origem.
Este trabalho imenso, que requer coragem,
paciência e perseverança, merece o aplauso da Igreja inteira e da sociedade.
Naturalmente o aplauso, por si só, não basta para se pôr termo ao flagelo da
exploração da pessoa humana. Faz falta também um tríplice empenho a
nível institucional: prevenção, protecção das vítimas e acção judicial
contra os responsáveis. Além disso, assim como as organizações criminosas usam
redes globais para alcançar os seus objectivos, assim também a acção para
vencer este fenómeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos
diferentes actores que compõem a sociedade.
Os Estados deveriam
vigiar por que as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o
trabalho, as adopções, a transferência das empresas e a comercialização de
produtos feitos por meio da exploração do trabalho sejam efectivamente
respeitadoras da dignidade da pessoa. São necessárias leis justas, centradas na
pessoa humana, que defendam os seus direitos fundamentais e, se violados, os
recuperem reabilitando quem é vítima e assegurando a sua incolumidade, como são
necessários também mecanismos eficazes de controle da correcta aplicação de
tais normas, que não deixem espaço à corrupção e à impunidade. É preciso ainda
que seja reconhecido o papel da mulher na sociedade, intervindo também no plano
cultural e da comunicação para se obter os resultados esperados.
As organizações
intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio da
subsidiariedade, a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes
transnacionais do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o
tráfico ilegal dos migrantes. Torna-se necessária uma cooperação a vários
níveis, que englobe as instituições nacionais e internacionais, bem como as
organizações da sociedade civil e do mundo empresarial.
Com efeito, as empresas[6] têm
o dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho dignas e
salários adequados, mas também de vigiar por que não tenham lugar, nas cadeias
de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas. A par da
responsabilidade social da empresa, aparece depois a responsabilidade
social do consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria ter consciência de
que «comprar é sempre um acto moral, para além de económico».[7]
As organizações da sociedade civil,
por sua vez, têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências sobre os
passos necessários para combater e erradicar a cultura da servidão.
Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de sofrimento das vítimas
do tráfico e a voz das congregações religiosas que as acompanham rumo à
libertação, multiplicou os apelos à comunidade internacional pedindo que os
diversos actores unam os seus esforços e cooperem para acabar com este
flagelo.[8] Além disso, foram organizados alguns encontros com a
finalidade de dar visibilidade ao fenómeno do tráfico de pessoas e facilitar a
colaboração entre os diferentes actores, incluindo peritos do mundo académico e
das organizações internacionais, forças da polícia dos diferentes países de
origem, trânsito e destino dos migrantes, e representantes dos grupos eclesiais
comprometidos em favor das vítimas. Espero que este empenho continue e se
reforce nos próximos anos.
Globalizar a
fraternidade, não a escravidão nem a indiferença
6. Na sua actividade de «proclamação da verdade do amor de Cristo na
sociedade»,[9] a Igreja não cessa de se empenhar em acções de carácter
caritativo guiada pela verdade sobre o homem. Ela tem o dever de mostrar a
todos o caminho da conversão, que induz a voltar os olhos para o próximo, a ver
no outro – seja ele quem for – um irmão e uma irmã em humanidade, a reconhecer
a sua dignidade intrínseca na verdade e na liberdade, como nos ensina a
história de Josefina Bakhita, a Santa originária da região do Darfur, no Sudão.
Raptada por traficantes de escravos e vendida a patrões desalmados desde a
idade de nove anos, haveria de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes,
«uma livre filha de Deus» mediante a fé vivida na consagração religiosa e no
serviço aos outros, especialmente aos pequenos e fracos. Esta Santa, que viveu
a cavalo entre os séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de
esperança[10] para as numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os
esforços de quantos se dedicam à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade
contemporânea, uma chaga na carne de Cristo».[11]
Nesta perspectiva, desejo convidar cada um, segundo a respectiva missão e
responsabilidades particulares, a realizar gestos de fraternidade a bem de
quantos são mantidos em estado de servidão. Perguntemo-nos, enquanto comunidade
e indivíduo, como nos sentimos interpelados quando, na vida quotidiana, nos
encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres
humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos que poderiam razoavelmente
resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por
indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou por razões
económicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de
positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no
dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento,
dizer «bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e
não nos custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma
pessoa que tacteia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta
realidade.
Temos de reconhecer que estamos perante um
fenómeno mundial que excede as competências de uma única comunidade ou nação.
Para vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às do próprio
fenómeno. Por esta razão, lanço um veemente apelo a todos os homens e mulheres
de boa vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das instituições, são
testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão contemporânea, para
que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar à vista dos
sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de liberdade e
dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de Cristo,[12] o
Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a quem Ele mesmo
chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45).
Sabemos que Deus perguntará a cada um de
nós: Que fizeste do teu irmão? (cf. Gen 4, 9-10). A
globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de
tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices duma globalização
da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e
levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo
e as novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas
mãos.
Vaticano, 8 de Dezembro de 2014.
FRANCISCUS