A revolução está em marcha. E começou onde muitos
não esperariam: o Papa Francisco publicou a exortação Evangelii
Gaudium (A alegria do evangelho) que sistematiza muito do que
ele tem andado a propor e a dizer mas, mesmo assim, deixou meio mundo
espantado com a ousadia. No texto, o primeiro Papa latino-americano propõe
uma reforma profunda da Igreja que a torne numa comunidade de desassossego -
"Não podemos ficar tranquilos." Critica, com dureza, a atual
"ditadura de uma economia sem rosto" e que "mata", diz
que a inclusão social dos pobres e a questão da paz e do diálogo social são
as duas questões determinantes do futuro da humanidade e sugere que o
catolicismo tem de assumir um novo dinamismo missionário, sobretudo em
relação às culturas urbanas.
Na sua perspetiva, no horizonte e no centro da
atividade da Igreja ou da política, deve estar a pessoa. "Há uma crise
antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano", sublinha o
Papa Bergoglio. Os mais pobres e vulneráveis devem ser os primeiros
destinatários da ação da Igreja e dos sistemas políticos e financeiros.
Objetivo da proposta: a "revolução da ternura".
Este documento culmina quase nove meses intensos,
desde a eleição de Francisco, a 13 de março, depois da resignação de Bento
XVI. Meses que puseram a Igreja Católica a mexer de forma inusitada. E que já
tiveram consequências, mesmo fora do catolicismo: o dia de jejum e oração
pela paz na Síria, convocado pelo Papa Francisco, aliado às suas críticas a
uma possibilidade de intervenção militar internacional, foram um dos
obstáculos principais à entrada dos Estados Unidos na guerra que assola
aquele país há quase três anos; e a sua ida a Lampedusa, na primeira viagem
fora de Roma, para condenar a "globalização da indiferença",
obrigou a Europa a olhar para a ilha que acolhe tantos refugiados (ou recolhe
os seus cadáveres) - três meses depois, Durão Barroso foi a Lampedusa, sendo
recebido aos gritos de "assassinos"...
Há apenas um mês, Bergoglio já provocara um pequeno
terramoto no interior do catolicismo, com a divulgação do documento
preparatório do Sínodo dos Bispos sobre a família, que decorrerá em outubro
de 2014. No inquérito, há perguntas acerca do modo como os casais católicos
vivem ou encaram a sexualidade, ou sobre como a Igreja deve lidar com os
divorciados que voltaram a casar ou as uniões homossexuais. O inquérito, que
não é da responsabilidade direta do Papa, mas tem a sua orientação clara por
trás, foi apresentado como destinado a ser respondido pelo maior número
possível de crentes - em vários países, os bispos colocaram-no mesmo na
internet - mas não deixou de provocar tensão em diferentes setores, que o
procuraram relativizar. Quatro semanas antes, o Papa tinha-se reunido pela
primeira vez com a comissão de oito cardeais que criou para o ajudar no
governo da Igreja e encetar um processo de reformas. Foi na sequência desse
encontro, aliás, que o inquérito sobre a família foi apresentado.
Com a exortação apostólica da semana passada, as
principais intuições e propostas do Papa Francisco ficam sistematizadas num
único texto. Melhor ainda: ele diz qual é o seu sonho para a Igreja e o
mundo, um pouco à semelhança do discurso de Martin Luther King. O sonho do
discípulo de Jesus "não é estar cheio de inimigos, mas antes que a
Palavra (de Deus) seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e
renovadora", escreve. E acrescenta: "Sonho com uma opção missionária
capaz de transformar tudo" na Igreja e de "chegar a todos". E
sobre como organizar o mundo, diz, no ponto 192, que o sonho "voa ainda
mais alto" e inclui o "sustento para todos", bem como
"educação, acesso a cuidados de saúde e especialmente trabalho" e
"salário justo" que permita "o acesso adequado aos outros bens
que estão destinados ao uso comum".
Esta exortação apostólica, o segundo tipo de
documento mais importante, depois das encíclicas (ver caixa), acaba, assim,
por constituir o verdadeiro documento programático para o pontificado
franciscano. A questão política e económica aparece como prioritária, na
afirmação de que o sistema deve estar ao serviço de todas as pessoas e em
especial dos mais frágeis.
Os excluídos continuam à espera
O Papa começa por contestar a ideia de que o
crescimento económico e o livre mercado produzam por si só "maior
equidade e inclusão social". Tal opinião, diz, "nunca foi
confirmada pelos factos" e manifesta "uma confiança vaga e ingénua
na bondade" de quem tem "o poder económico e nos mecanismos
sacralizados do sistema económico reinante". Entretanto, "os
excluídos continuam a esperar" e desenvolveu-se uma "globalização
da indiferença".
Esta ideia tem sido repetida pelo Papa, com
insistência. Mas soou mais forte na sua ida a Lampedusa, naquela que foi,
simbolicamente, a primeira viagem do pontificado fora de Roma. A 8 de julho,
Francisco quis homenagear os refugiados que morrem a atravessar o
Mediterrâneo. Na homília da missa que então celebrou, Bergoglio lançou um
alerta a todas as consciências: "Muitos de nós - e neste número me
incluo também eu - estamos desorientados, já não estamos atentos ao mundo em
que vivemos, não cuidamos nem guardamos aquilo que Deus criou para todos, e
já não somos capazes sequer de nos guardar uns aos outros. E, quando esta
desorientação atinge as dimensões do mundo, chega-se a tragédias como aquela
a que assistimos."
As duas perguntas que Francisco fez a seguir estão
na base do seu entendimento antropológico e da forma como encara a missão da
Igreja: "Onde estás? Onde está o teu irmão?" Com elas, quis dizer
que cada pessoa é responsável pelos seus atos, por tudo aquilo que se passa
no mundo. E acrescentou uma terceira: "Quem de nós chorou por este facto
e por factos como este? Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem
chorou por estas pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que traziam
os seus filhos? Por estes homens cujo desejo era conseguir qualquer coisa
para sustentar as próprias famílias? Somos uma sociedade que esqueceu a
experiência de chorar, de 'padecer com': a globalização da indiferença
tirou-nos a capacidade de chorar!"
Para Francisco, cada um é solidário com o destino
comum da humanidade. Como ele disse, na favela da Varginha, no Rio de
Janeiro, aquando da Jornada Mundial da Juventude que ali decorreu, a
solidariedade - "palavra frequentemente esquecida ou silenciada, porque
é incómoda" e "quase parece um palavrão" - deve ser uma
cultura. De modo a "ver no outro não um concorrente ou um número, mas um
irmão". Por isso, todos os dias, nas homilias das missas matinais na
Casa de Santa Marta ou nos discursos que faz, ele fundamenta-se na Bíblia
para defender o "sentido da responsabilidade fraterna" a que se
referia em Lampedusa. E para criticar a cultura do bem-estar que torna as
pessoas "insensíveis aos gritos dos outros" e nos faz "viver
como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas mas não são nada, são pura
ilusão do fútil, do provisório".
A este modo de ver e agir do Papa Francisco não é
alheia a sua origem argentina e, pois, latino-americana. Numa realidade de
desigualdades sociais gritantes, Bergoglio habituara-se já a entrar nas
"villa miseria" de Buenos Aires. Aí, muitas vezes celebrava missa,
entre barracas, com gente que recolhia lixo ou cartão para sobreviver. E a
todos dirigia a mesma mensagem de condenação das injustiças, da
responsabilidade individual pelo destino comum e da centralidade da pessoa na
organização social.
O problema económico, escreve o Papa na exortação da
semana passada, é que se aceita o "domínio" do dinheiro "sobre
nós e as nossas sociedades". Há uma "ditadura de uma economia sem
rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano". E a crise põe em
evidência "uma orientação antropológica que reduz o ser humano a apenas
uma das suas necessidades: o consumo". Mais: as desigualdades sociais
geram violência e a repressão apenas cria "novos e piores
conflitos". E isso é "ainda mais irritante quando os excluídos veem
crescer este cancro social que é a corrupção".
Ideologias que negam o Estado
As denúncias não poupam nas palavras: "Enquanto
os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada
vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz." Este desequilíbrio
"provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a
especulação financeira" e que "negam o direito do controlo dos
Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum". O atual sistema,
critica, "tende a devorar tudo para aumentar os benefícios" e
qualquer realidade mais frágil, como o meio ambiente, "fica indefesa
perante os interesses do mercado divinizado".
No extenso documento, de quase 200 páginas, o Papa
dedica um capítulo inteiro (50 páginas) à "dimensão social da
evangelização". Aqui, insiste em que "a preocupação pelo
desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade" deriva
diretamente da fé em Cristo. Ou seja, não é um apêndice de um qualquer
voluntarismo caridoso mal entendido, mas está no cerne da mensagem cristã.
Neste sentido, Francisco repete que "a função
social da propriedade e o destino universal dos bens" são anteriores à
propriedade privada. Nada de novo na doutrina social católica - tal como não
é novo o apelo a uma refundação do sistema financeiro internacional, repetido
também com insistência por João Paulo II e Bento XVI.
Qual é, então, a diferença em relação aos seus
antecessores? A linguagem clara e acessível que Bergoglio utiliza, o uso
constante de comparações e imagens do quotidiano, a partir da realidade e da
experiência que ele tão bem conhece. Mas também a proximidade e humanidade
com que se acerca das pessoas e o contacto fácil que estabelece com elas,
numa clara dessacralização do papado - outra marca desta liderança.
Neste aspeto, é fundamental a decisão inicial de
passar a viver na Casa de Santa Marta. Ali trabalham funcionários do Vaticano
e por lá passa, diariamente, gente de todo o mundo, a quem Bergoglio saúda e
com quem, se calhar, troca impressões. Quer ao almoço, quer na missa matinal,
as pessoas têm o Papa ali à mão, podendo abeirar-se dele sem barreiras. Os
telefonemas pessoais que faz para tanta gente (alguns acabam por ser
revelados) são outro sinal da ausência de filtros numa comunicação a que
ninguém estava habituado.
A este modo de exercício do poder não será estranho
que tanta gente, mesmo fora da Igreja, se sinta atraída pela figura de
Francisco - que acaba por ganhar na comparação com o mundo da política e da
finança, dominado pela competição, vontade de mandar e desprezo pela pessoa.
Por isso é que a sua coerência é sublinhada por líderes políticos mas também
por pessoas comuns.
Apesar disso, o Papa não quer que os católicos se
afastem da política, mas antes se metam nela de corpo inteiro. A 7 de junho,
num encontro com alunos dos colégios jesuítas, largou o discurso que tinha
preparado e respondeu às perguntas de alguns estudantes. E foi claro:
"Para o cristão, é uma obrigação envolver-se na política. (...) a
política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum. E
os leigos cristãos devem trabalhar na política (...) Não é fácil; a política
está muito suja; e ponho-me a pergunta: Mas está suja, porquê? Não será
porque os cristãos se envolveram na política, sem espírito evangélico? (...)
Trabalhar para o bem comum é um dever do cristão! E, muitas vezes, a opção de
trabalho é a política."
No documento da semana passada, o Papa escreve que a
religião não deve ser relegada "para a intimidade secreta das pessoas,
sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com a
saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciarmos sobre os
acontecimentos que interessam aos cidadãos".
Original é também a sua proposta de uma teologia da
cidade e da cultura urbana. A Igreja precisa de descobrir Deus nas ruas e
praças, pois ele "vive entre os citadinos, promovendo a solidariedade, a
fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de justiça".
Contra os 'fiscais da fé'
A sua ideia de inclusão não exclui a Igreja. Bem
pelo contrário. Desde o início, o Papa tem vincado a necessidade de acolher
mesmo quem vive fora das normas mais tradicionais. É conhecido o exemplo, por
ele dado frequentemente, de acolher uma mãe solteira que pede para que o seu
filho seja batizado. Em vez dos "fiscais da fé" e da
"alfândega pastoral", como ele dizia em maio e repete agora, na
exortação, a Igreja precisa de "facilitadores da fé" que acolham
todas as pessoas. E, ao dizê-lo, repete sempre o exemplo de Jesus nos
evangelhos.
De resto, o Papa afirma que a caridade e a justiça
devem estar mais presentes na pregação católica do que outras virtudes;
condena o machismo e a violência doméstica; diz que os confessionários não
devem ser "câmaras de tortura" e critica a ideia de uma
"doutrina monolítica" que impeça que se veja a "riqueza
inesgotável do Evangelho".
Mas há mais: num tempo em que tantos católicos se
sentiam menosprezados ou mesmo desprezados pelas suas opiniões mais críticas,
o Papa vem dizer que todos devem ser escutados. E não se coíbe de recomendar
aos bispos, por exemplo, que ouçam toda a gente e não apenas os que estão
"sempre prontos" a lisonjeá-los.
A questão mais difícil que Francisco terá de
enfrentar talvez seja a do papel da mulher. João Paulo II declarou que a
discussão sobre a possibilidade de ordenar mulheres está encerrada, mas
crescem as vozes dos que, apoiando-se na leitura da Bíblia, dizem que as
mulheres tiveram um papel muito mais determinante no início do cristianismo do
que se pensava tradicionalmente. Em julho, ao regressar do Rio de Janeiro, o
Papa disse que o papel das mulheres na Igreja é mais do que o da maternidade
e "que se deve avançar mais na explicitação" desse papel e carisma
- "É necessário fazer uma profunda teologia da mulher."
Nesta matéria, o Papa está preso entre a declaração
de João Paulo II e o seu desejo de dar mais espaço às mulheres nos lugares
"onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da
Igreja". Mas também aqui é evidente que nada ficará na mesma com este
Papa. Um desassossego.
O documento programático
A exortação apostólica é um documento dos papas que
pretende, normalmente, mobilizar os católicos em relação a um tema. Depois
das encíclicas, são o tipo de documento mais importante que os papas
escrevem. Mas, diferentemente do habitual, é esta exortação Evangelii Gaudium
(A Alegria do Evangelho) que aparece como o verdadeiro documento programático
para a ação do Papa Francisco.
Palavras novas e velhas
* No texto, o Papa inventa neologismos:
"primeireiam" são os que tomam a iniciativa; o
"deveriaqueísmo" é o pecado dos que gostam de dar "instruções
ficando de fora". Mas este é o Papa das "periferias", como ele
gosta tanto de dizer, referindo-se à necessidade de a Igreja ir ao encontro
dos que estão mais longe da fé ou da instituição.
* Francisco cita os seus antecessores mas sem uma
linguagem formal: nunca se lhes refere com a tradicional fórmula "o meu
venerado predecessor". Cita apenas os nomes, sem mais: "Não me
cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI...", "João Paulo II
convidou-nos..." ou "Quem deu um impulso decisivo foi Paulo
VI..."
* João Paulo II criou a expressão "nova
evangelização", dizendo que a Igreja precisava de "novos métodos,
uma nova linguagem e um novo ardor". Mas, muitas vezes, tal expressão
era usada ambiguamente, com significações tradicionais ou clássicas. Neste
documento, o Papa Francisco refere a "nova evangelização" apenas
nove vezes, mas diz que é necessária "uma nova etapa evangelizadora,
cheia de ardor e dinamismo". E apresenta de forma clara aquilo que deve
ser essa nova etapa.
* A palavra pontificado aparece apenas uma vez - na
assinatura do documento, na fórmula "dado em Roma, dia 24 de novembro do
ano de 2013, primeiro do meu pontificado". Também neste tipo de
linguagem o Papa inova: ao referir-se a si mesmo, desde o discurso inaugural,
como "bispo de Roma", Francisco quer abrir caminho para um diálogo
com os ortodoxos e os protestantes sobre o seu ministério - a palavra que
escolhe, em lugar de pontificado - entre as igrejas cristãs. E cita João
Paulo II que, na encíclica Ut Unum Sint (Que todos sejam um), de 1995, dizia
ser necessária "uma forma de exercício" do papado que, "sem
renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma
situação nova". Francisco acrescenta: "Pouco temos avançado neste
sentido. Também o papado e as estruturas centrais da Igreja universal
precisam de ouvir este apelo a uma conversão pastoral."
* A exortação Evangelli Gaudium surge como resultado
do Sínodo dos Bispos de 2012, sobre a nova evangelização. Normalmente, os
bispos aprovam um conjunto de propostas que entregam ao Papa para ele redigir
a exortação apostólica. Para o seu texto, Francisco diz que consultou
igualmente "várias pessoas" e que exprime igualmente as
preocupações que o movem. Também aqui se revela o seu modo mais
descentralizado de exercer o papado, que diz no texto ser uma das suas
prioridades. Não se deve, aliás, esperar do Papa, acrescenta, "uma
palavra definitiva" sobre todas as questões. E os crentes não devem
aclamar o Papa mas sim Jesus, como ele disse num encontro com movimentos
católicos, alguns dos quais conhecidos pela sua militância
"papista".
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