sábado, 4 de janeiro de 2014

Como o Papa quer mudar a Igreja e o Mundo


O LÍDER DOS CATÓLICOS QUER UMA IGREJA DESASSOSSEGADA E VIRADA DO AVESSO, OS POBRES NO CENTRO DA AÇÃO E POLÍTICAS CONTRA UMA ECONOMIA QUE "MATA". A REVOLUÇÃO DE FRANCISCO COMEÇOU
António Marujo (texto publicado na VISÃO 1083, de 5 dezembro)
11:46 Sexta feira, 13 de Dezembro de 2013





A revolução está em marcha. E começou onde muitos não esperariam: o Papa Francisco publicou a exortação Evangelii Gaudium (A alegria do evangelho) que sistematiza muito do que ele tem andado a propor e a dizer mas, mesmo assim, deixou meio mundo espantado com a ousadia. No texto, o primeiro Papa latino-americano propõe uma reforma profunda da Igreja que a torne numa comunidade de desassossego - "Não podemos ficar tranquilos." Critica, com dureza, a atual "ditadura de uma economia sem rosto" e que "mata", diz que a inclusão social dos pobres e a questão da paz e do diálogo social são as duas questões determinantes do futuro da humanidade e sugere que o catolicismo tem de assumir um novo dinamismo missionário, sobretudo em relação às culturas urbanas.

Na sua perspetiva, no horizonte e no centro da atividade da Igreja ou da política, deve estar a pessoa. "Há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano", sublinha o Papa Bergoglio. Os mais pobres e vulneráveis devem ser os primeiros destinatários da ação da Igreja e dos sistemas políticos e financeiros. Objetivo da proposta: a "revolução da ternura".

Este documento culmina quase nove meses intensos, desde a eleição de Francisco, a 13 de março, depois da resignação de Bento XVI. Meses que puseram a Igreja Católica a mexer de forma inusitada. E que já tiveram consequências, mesmo fora do catolicismo: o dia de jejum e oração pela paz na Síria, convocado pelo Papa Francisco, aliado às suas críticas a uma possibilidade de intervenção militar internacional, foram um dos obstáculos principais à entrada dos Estados Unidos na guerra que assola aquele país há quase três anos; e a sua ida a Lampedusa, na primeira viagem fora de Roma, para condenar a "globalização da indiferença", obrigou a Europa a olhar para a ilha que acolhe tantos refugiados (ou recolhe os seus cadáveres) - três meses depois, Durão Barroso foi a Lampedusa, sendo recebido aos gritos de "assassinos"...

Há apenas um mês, Bergoglio já provocara um pequeno terramoto no interior do catolicismo, com a divulgação do documento preparatório do Sínodo dos Bispos sobre a família, que decorrerá em outubro de 2014. No inquérito, há perguntas acerca do modo como os casais católicos vivem ou encaram a sexualidade, ou sobre como a Igreja deve lidar com os divorciados que voltaram a casar ou as uniões homossexuais. O inquérito, que não é da responsabilidade direta do Papa, mas tem a sua orientação clara por trás, foi apresentado como destinado a ser respondido pelo maior número possível de crentes - em vários países, os bispos colocaram-no mesmo na internet - mas não deixou de provocar tensão em diferentes setores, que o procuraram relativizar. Quatro semanas antes, o Papa tinha-se reunido pela primeira vez com a comissão de oito cardeais que criou para o ajudar no governo da Igreja e encetar um processo de reformas. Foi na sequência desse encontro, aliás, que o inquérito sobre a família foi apresentado.

Com a exortação apostólica da semana passada, as principais intuições e propostas do Papa Francisco ficam sistematizadas num único texto. Melhor ainda: ele diz qual é o seu sonho para a Igreja e o mundo, um pouco à semelhança do discurso de Martin Luther King. O sonho do discípulo de Jesus "não é estar cheio de inimigos, mas antes que a Palavra (de Deus) seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e renovadora", escreve. E acrescenta: "Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo" na Igreja e de "chegar a todos". E sobre como organizar o mundo, diz, no ponto 192, que o sonho "voa ainda mais alto" e inclui o "sustento para todos", bem como "educação, acesso a cuidados de saúde e especialmente trabalho" e "salário justo" que permita "o acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum".

Esta exortação apostólica, o segundo tipo de documento mais importante, depois das encíclicas (ver caixa), acaba, assim, por constituir o verdadeiro documento programático para o pontificado franciscano. A questão política e económica aparece como prioritária, na afirmação de que o sistema deve estar ao serviço de todas as pessoas e em especial dos mais frágeis.

Os excluídos continuam à espera

O Papa começa por contestar a ideia de que o crescimento económico e o livre mercado produzam por si só "maior equidade e inclusão social". Tal opinião, diz, "nunca foi confirmada pelos factos" e manifesta "uma confiança vaga e ingénua na bondade" de quem tem "o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema económico reinante". Entretanto, "os excluídos continuam a esperar" e desenvolveu-se uma "globalização da indiferença".

Esta ideia tem sido repetida pelo Papa, com insistência. Mas soou mais forte na sua ida a Lampedusa, naquela que foi, simbolicamente, a primeira viagem do pontificado fora de Roma. A 8 de julho, Francisco quis homenagear os refugiados que morrem a atravessar o Mediterrâneo. Na homília da missa que então celebrou, Bergoglio lançou um alerta a todas as consciências: "Muitos de nós - e neste número me incluo também eu - estamos desorientados, já não estamos atentos ao mundo em que vivemos, não cuidamos nem guardamos aquilo que Deus criou para todos, e já não somos capazes sequer de nos guardar uns aos outros. E, quando esta desorientação atinge as dimensões do mundo, chega-se a tragédias como aquela a que assistimos."

As duas perguntas que Francisco fez a seguir estão na base do seu entendimento antropológico e da forma como encara a missão da Igreja: "Onde estás? Onde está o teu irmão?" Com elas, quis dizer que cada pessoa é responsável pelos seus atos, por tudo aquilo que se passa no mundo. E acrescentou uma terceira: "Quem de nós chorou por este facto e por factos como este? Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por estas pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que traziam os seus filhos? Por estes homens cujo desejo era conseguir qualquer coisa para sustentar as próprias famílias? Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de 'padecer com': a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar!"

Para Francisco, cada um é solidário com o destino comum da humanidade. Como ele disse, na favela da Varginha, no Rio de Janeiro, aquando da Jornada Mundial da Juventude que ali decorreu, a solidariedade - "palavra frequentemente esquecida ou silenciada, porque é incómoda" e "quase parece um palavrão" - deve ser uma cultura. De modo a "ver no outro não um concorrente ou um número, mas um irmão". Por isso, todos os dias, nas homilias das missas matinais na Casa de Santa Marta ou nos discursos que faz, ele fundamenta-se na Bíblia para defender o "sentido da responsabilidade fraterna" a que se referia em Lampedusa. E para criticar a cultura do bem-estar que torna as pessoas "insensíveis aos gritos dos outros" e nos faz "viver como se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório".

A este modo de ver e agir do Papa Francisco não é alheia a sua origem argentina e, pois, latino-americana. Numa realidade de desigualdades sociais gritantes, Bergoglio habituara-se já a entrar nas "villa miseria" de Buenos Aires. Aí, muitas vezes celebrava missa, entre barracas, com gente que recolhia lixo ou cartão para sobreviver. E a todos dirigia a mesma mensagem de condenação das injustiças, da responsabilidade individual pelo destino comum e da centralidade da pessoa na organização social.

O problema económico, escreve o Papa na exortação da semana passada, é que se aceita o "domínio" do dinheiro "sobre nós e as nossas sociedades". Há uma "ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano". E a crise põe em evidência "uma orientação antropológica que reduz o ser humano a apenas uma das suas necessidades: o consumo". Mais: as desigualdades sociais geram violência e a repressão apenas cria "novos e piores conflitos". E isso é "ainda mais irritante quando os excluídos veem crescer este cancro social que é a corrupção".

Ideologias que negam o Estado

As denúncias não poupam nas palavras: "Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz." Este desequilíbrio "provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira" e que "negam o direito do controlo dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum". O atual sistema, critica, "tende a devorar tudo para aumentar os benefícios" e qualquer realidade mais frágil, como o meio ambiente, "fica indefesa perante os interesses do mercado divinizado".

No extenso documento, de quase 200 páginas, o Papa dedica um capítulo inteiro (50 páginas) à "dimensão social da evangelização". Aqui, insiste em que "a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade" deriva diretamente da fé em Cristo. Ou seja, não é um apêndice de um qualquer voluntarismo caridoso mal entendido, mas está no cerne da mensagem cristã.

Neste sentido, Francisco repete que "a função social da propriedade e o destino universal dos bens" são anteriores à propriedade privada. Nada de novo na doutrina social católica - tal como não é novo o apelo a uma refundação do sistema financeiro internacional, repetido também com insistência por João Paulo II e Bento XVI.

Qual é, então, a diferença em relação aos seus antecessores? A linguagem clara e acessível que Bergoglio utiliza, o uso constante de comparações e imagens do quotidiano, a partir da realidade e da experiência que ele tão bem conhece. Mas também a proximidade e humanidade com que se acerca das pessoas e o contacto fácil que estabelece com elas, numa clara dessacralização do papado - outra marca desta liderança.

Neste aspeto, é fundamental a decisão inicial de passar a viver na Casa de Santa Marta. Ali trabalham funcionários do Vaticano e por lá passa, diariamente, gente de todo o mundo, a quem Bergoglio saúda e com quem, se calhar, troca impressões. Quer ao almoço, quer na missa matinal, as pessoas têm o Papa ali à mão, podendo abeirar-se dele sem barreiras. Os telefonemas pessoais que faz para tanta gente (alguns acabam por ser revelados) são outro sinal da ausência de filtros numa comunicação a que ninguém estava habituado.

A este modo de exercício do poder não será estranho que tanta gente, mesmo fora da Igreja, se sinta atraída pela figura de Francisco - que acaba por ganhar na comparação com o mundo da política e da finança, dominado pela competição, vontade de mandar e desprezo pela pessoa. Por isso é que a sua coerência é sublinhada por líderes políticos mas também por pessoas comuns.

Apesar disso, o Papa não quer que os católicos se afastem da política, mas antes se metam nela de corpo inteiro. A 7 de junho, num encontro com alunos dos colégios jesuítas, largou o discurso que tinha preparado e respondeu às perguntas de alguns estudantes. E foi claro: "Para o cristão, é uma obrigação envolver-se na política. (...) a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum. E os leigos cristãos devem trabalhar na política (...) Não é fácil; a política está muito suja; e ponho-me a pergunta: Mas está suja, porquê? Não será porque os cristãos se envolveram na política, sem espírito evangélico? (...) Trabalhar para o bem comum é um dever do cristão! E, muitas vezes, a opção de trabalho é a política."

No documento da semana passada, o Papa escreve que a religião não deve ser relegada "para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e nacional, sem nos preocuparmos com a saúde das instituições da sociedade civil, sem nos pronunciarmos sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos".

Original é também a sua proposta de uma teologia da cidade e da cultura urbana. A Igreja precisa de descobrir Deus nas ruas e praças, pois ele "vive entre os citadinos, promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de justiça".

Contra os 'fiscais da fé'

A sua ideia de inclusão não exclui a Igreja. Bem pelo contrário. Desde o início, o Papa tem vincado a necessidade de acolher mesmo quem vive fora das normas mais tradicionais. É conhecido o exemplo, por ele dado frequentemente, de acolher uma mãe solteira que pede para que o seu filho seja batizado. Em vez dos "fiscais da fé" e da "alfândega pastoral", como ele dizia em maio e repete agora, na exortação, a Igreja precisa de "facilitadores da fé" que acolham todas as pessoas. E, ao dizê-lo, repete sempre o exemplo de Jesus nos evangelhos.

De resto, o Papa afirma que a caridade e a justiça devem estar mais presentes na pregação católica do que outras virtudes; condena o machismo e a violência doméstica; diz que os confessionários não devem ser "câmaras de tortura" e critica a ideia de uma "doutrina monolítica" que impeça que se veja a "riqueza inesgotável do Evangelho".

Mas há mais: num tempo em que tantos católicos se sentiam menosprezados ou mesmo desprezados pelas suas opiniões mais críticas, o Papa vem dizer que todos devem ser escutados. E não se coíbe de recomendar aos bispos, por exemplo, que ouçam toda a gente e não apenas os que estão "sempre prontos" a lisonjeá-los.

A questão mais difícil que Francisco terá de enfrentar talvez seja a do papel da mulher. João Paulo II declarou que a discussão sobre a possibilidade de ordenar mulheres está encerrada, mas crescem as vozes dos que, apoiando-se na leitura da Bíblia, dizem que as mulheres tiveram um papel muito mais determinante no início do cristianismo do que se pensava tradicionalmente. Em julho, ao regressar do Rio de Janeiro, o Papa disse que o papel das mulheres na Igreja é mais do que o da maternidade e "que se deve avançar mais na explicitação" desse papel e carisma - "É necessário fazer uma profunda teologia da mulher."

Nesta matéria, o Papa está preso entre a declaração de João Paulo II e o seu desejo de dar mais espaço às mulheres nos lugares "onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja". Mas também aqui é evidente que nada ficará na mesma com este Papa. Um desassossego.

O documento programático

A exortação apostólica é um documento dos papas que pretende, normalmente, mobilizar os católicos em relação a um tema. Depois das encíclicas, são o tipo de documento mais importante que os papas escrevem. Mas, diferentemente do habitual, é esta exortação Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho) que aparece como o verdadeiro documento programático para a ação do Papa Francisco.

Palavras novas e velhas

* No texto, o Papa inventa neologismos: "primeireiam" são os que tomam a iniciativa; o "deveriaqueísmo" é o pecado dos que gostam de dar "instruções ficando de fora". Mas este é o Papa das "periferias", como ele gosta tanto de dizer, referindo-se à necessidade de a Igreja ir ao encontro dos que estão mais longe da fé ou da instituição.

* Francisco cita os seus antecessores mas sem uma linguagem formal: nunca se lhes refere com a tradicional fórmula "o meu venerado predecessor". Cita apenas os nomes, sem mais: "Não me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI...", "João Paulo II convidou-nos..." ou "Quem deu um impulso decisivo foi Paulo VI..."

* João Paulo II criou a expressão "nova evangelização", dizendo que a Igreja precisava de "novos métodos, uma nova linguagem e um novo ardor". Mas, muitas vezes, tal expressão era usada ambiguamente, com significações tradicionais ou clássicas. Neste documento, o Papa Francisco refere a "nova evangelização" apenas nove vezes, mas diz que é necessária "uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo". E apresenta de forma clara aquilo que deve ser essa nova etapa.

* A palavra pontificado aparece apenas uma vez - na assinatura do documento, na fórmula "dado em Roma, dia 24 de novembro do ano de 2013, primeiro do meu pontificado". Também neste tipo de linguagem o Papa inova: ao referir-se a si mesmo, desde o discurso inaugural, como "bispo de Roma", Francisco quer abrir caminho para um diálogo com os ortodoxos e os protestantes sobre o seu ministério - a palavra que escolhe, em lugar de pontificado - entre as igrejas cristãs. E cita João Paulo II que, na encíclica Ut Unum Sint (Que todos sejam um), de 1995, dizia ser necessária "uma forma de exercício" do papado que, "sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova". Francisco acrescenta: "Pouco temos avançado neste sentido. Também o papado e as estruturas centrais da Igreja universal precisam de ouvir este apelo a uma conversão pastoral."

* A exortação Evangelli Gaudium surge como resultado do Sínodo dos Bispos de 2012, sobre a nova evangelização. Normalmente, os bispos aprovam um conjunto de propostas que entregam ao Papa para ele redigir a exortação apostólica. Para o seu texto, Francisco diz que consultou igualmente "várias pessoas" e que exprime igualmente as preocupações que o movem. Também aqui se revela o seu modo mais descentralizado de exercer o papado, que diz no texto ser uma das suas prioridades. Não se deve, aliás, esperar do Papa, acrescenta, "uma palavra definitiva" sobre todas as questões. E os crentes não devem aclamar o Papa mas sim Jesus, como ele disse num encontro com movimentos católicos, alguns dos quais conhecidos pela sua militância "papista".

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